Dia de cinema. A criança vai empolgada ver um dos muitos filmes de heróis que estreiam quase todos os finais de semana. Ela acompanha tudo pela internet e sabe os nomes do elenco, da equipe de direção, de quem são as músicas – canta até algumas. A criança assiste ao filme estupefata, falando interjeições entre cenas cheias de emoções, olhando para a tela sem muita surpresa, mas com sede daquele mundo. Sai da sessão encantada, diz o que gostou e o que não – relata diferenças entre o que lê nos gibis e o que encarou naquelas duas horas de poltrona. Dá explicações esdrúxulas sobre coisas que os adultos não entenderam “é que tá nos quadrinhos e não dá pra colocar tudo no filme agora, mas vai ter um filme dois aí vão colocar”, fala com a convicção de produtor de Hollywood.
Come lanche, pega o brinquedo do filme no brinde que sozinho vale mais da metade do sanduíche com refrigerante e batatas. Hora de voltar para casa. Abre a porta da sala e entra correndo. A criança relata aos que não foram tudo o que viu na tela, com a mesma empolgação de quando saiu do cinema, a qual o acompanha até seu quarto, enquanto sorrisos se multiplicam mais por sua inocência do que por qualquer trama num filme de “gente colorida”.
Uma vez em seu ambiente particular, a magia começa a realmente acontecer. A criança retira das estantes organizadas as versões originais dos heróis que viu na tela grande. Personagens ainda mais hipercoloridos e bufantes, fazendo movimentos impossíveis, vivendo tramas improváveis em publicações de papel brilhante. A criança retira algumas das edições e as espalha pelo chão, depois vai até sua mesinha e pega tudo o que pode: papel, lápis, borracha, lápis de cor, corretivo, giz de cera, caneta, pincéis e aquarela – todos serão usados hoje, todos serão provados e todos cumprirão uma função.
A criança procura as “poses” mais legais em revistas diferentes e as replica do seu jeito. Passa horas colocando detalhes de uniformes, dando destaque nos olhos e nos “símbolos” – muito importante pra um herói o brasão estampado no peito -, começa a criar suas próprias narrativas, encontrando soluções diferentes que as do filme, misturando com “fatos” dos quadrinhos, completando os espaços com personagens que a criança mesmo criou. Vão-se quase 10 folhas de papel na primeira meia hora, há tinta derramada no chão, restos de lápis apontados, cotocos de pontas arrendondas – e um mundo de sonhos sem limites, em produções mais grandiosas do que a que ele assistiu hoje, mas com um orçamento muito mais modesto do que a do brinquedo-brinde da lanchonete.
Para a criança não há uma proporção errada ou um ajuste de design ou uma trama com furos de roteiro e incoerências. Está legal e pronto. Seu mundo é feito de paixão e emoções, de linhas, cores e uma alegria sincera. Suas histórias e desenhos não terão fim, porque não precisam ter, porque se acabarem, ela vai parar de desenhar, de criar, e sua grande brincadeira é isso: as horas com os materiais e em seu próprio mundo.
O silêncio impera e, quando a mãe vai ver, a criança está dormindo exausta como um deus ao sétimo dia deitado por sobre sua obra. Ela pega gentilmente a prole enquanto o pai arruma a bagunça, reunindo os rabiscos num único bloco, e separando as “ferramentas de trabalho” em um lugar visível para que ela possa ver onde todas as coisas estão ao acordar. Beijos de boa noite, luzes apagadas. Mãe e pai se reúnem na sala e repassam as criações do dia, rindo do processo de montar o quebra-cabeça deixado pelx artista. Ambos não entendem dos heróis ou dos desenhos, mas sabem que ali está a alegria que a criança precisa e esperam que dure sua vida inteira.
Texto de Luís Carlos Sousa. – um homenagem ao pequeno Matheusinho