Certa vez um artista foi ver sua própria exposição em um museu. Chegando lá, ele percebeu que todas as molduras em que estavam suas pinturas eram belíssimas. Assim, pediu para ver o diretor do museu e agradecê-lo pela escolha. Ao falar com o diretor, disse, referindo-se a moldureira: “É uma honra dividir espaço em sua parede com tão grande artista”. Sorrindo bajulador, o diretor comentou: “Mestre, nossa moldureira nem se compara a você”. Percebendo o tom inferiorizador do dirigente, o artista respondeu: “Verdade. Vocês não permitem que ela erre”.
história inspirada no documentário “Laerte-se”.
A alegoria evidencia algumas forma de pensar – sobre a arte e sobre os ofícios de uma maneira geral – que poderiam ser desconstruídas. A primeira delas é acerca da arte como representação do perfeito. Por mais que muitos artistas procurem sim uma “apropriação superior” da técnica, não deveria haver obrigatoriedade ou imposição para que essa seja a principal característica do “fazer artístico”. Pelo contrário, a arte costuma atingir seu melhor potencial quando usada para evocar sentimentos, pensamentos, ideias e sensações. Assim, muitas vezes fugir do estruturalismo e do ideal de “perfeição” nos aproxima do humano, permitindo desenvolver uma obra que assalta nossos sentimentos mais íntimos: memórias de infância, assuntos mal resolvidos, a maneira de como nos vemos/julgamos. As mais clássicas obras de arte causam um furor em nossos sentidos, sentimentos e alma.
O segundo tópico que poderia ser desconstruído – e que talvez parta da mesma discussão – é o de considerar arte somente as obras legitimadas por círculos acadêmicos ou críticos e, por tal, romanceadas em pedestais de glamour, feitas para apreciação, quando não raro, de uns poucos. Certamente, nem toda produção é produção artística, mas qualquer produto pode ter uma intenção artística. A janela feita na direção do nascente pelo pedreiro que esperava que o morador da casa tivesse a chance de ver tão belo espetáculo natural possui uma intenção artística. A moldureira que preferiu uma moldura em detalhes rebuscados para destacar os temas das obras que ficarão nos quadros contribuiu (também) artisticamente com a exposição. Os grãos de café selecionados com o desejo de trazer um sabor reconfortante a quem prova a bebida são ferramentas importantes que clamam pelo que nos é humano e, por isso, caro.
Ao tratar a arte como evocações do humano e, por sua vez, ver que o nosso fazer diário e rotineiro pode estar repleto de intenções emotivas ou discursivas, damos a chance de desmistificar o senso de “dom” e reconhecer em nós mesmos que temos características especiais que são tão belas e emocionantes que qualquer forma legitimada como arte.