Os anos de 1980 foram o berço do cyberpunk. Obras como Akira (1982 – quadrinho, 1989 – filme), Neuromancer (1984), Cyberpunk 2013 (RPG – 1988), Ghost in The Shell (1989 – quadrinho, 1995 – filme), dentre outras, ajudaram a definir o gênero, o qual é marcado por uma sociedade com péssima qualidade de vida, mas alta tecnologia, e regrada por governos formados por gigantescas megacorporações e presença constante de fundamentalismo e extremismo religioso. Nesse cenários, os párias e outlaws são os grandes heróis, caracterizados por rebeldes de desejos pessoais, que acabam entrando em conflito com interesses de governantes e outros grupos privilegiados. É (quase) certo dizer que, de todos os subgêneros do sci-fi, o cyberpunk foi um dos que melhor criaram simulacros à nossa contemporaneidade.
Dentre as mais destacadas obras, Battle Angel Alita (Gunnm 銃夢, Japão, 1990) marca quase o fim do período áureo do gênero, sendo o mais celebrado trabalho do mangaká Yukito Kishiro. O quadrinho se destaca de seus contemporâneos pela infantilidade e inocência da personagem principal, com seus conflitos adolescentes bem marcados e exponencializados por sua existência incerta e adaptação a um mundo hostil e “enferrujado”, procurando manter suas paixões e natureza bondosa intactos, enquanto a violência e os tons “cinzas” do local em que está a confrontam, bem como as incertezas sobre seu passado, esquecido depois de ter sido reativada pelo Dr. Ido, seu “pai” e mentor.
Sobre muitos pontos de vista, o mangá de Alita (republicado no Brasil pela Editora JBC em 4 volumes) tem características bem datadas, mas seus temas são atraentes – o quão humano alguém pode ser se seu corpo é quase todo máquina? – e sua personagem principal bem envolvente, o que garante uma leitura rápida e dinâmica, ainda mais pelo traço ágil de Kishiro, que monta cenas de ação cinematográficas e impactantes, mas bem alinhadas a sua trama que se desenrola sob muitos pontos de vista (e páginas) que seriam um grande desafio a qualquer adaptação.
Anos atrás os direitos do filme ficaram com James Cameron, fã confesso dos trabalhos japoneses. Como decidira direcionar suas energias a seu épico Avatar, a cadeira da direção ficou vazia, tendo, inclusive, Guillermo Del Toro como um dos candidatos a ela. Por fim, ficou para Robert Rodriguez (A Balada do Pistoleiro, Sin City) dirigir o longa, cujo roteiro foi feito por Laeta Kalogridis (Ilha do Medo, Alexandre, Altered Carbon) sob bases de Cameron, e produção de Jon Landau (Titanic).
Alita: Anjo de Combate (2019) tem as “bênçãos visuais de Cameron”: a “Cidade da Sucata” (Iron City) e o imaginativo universo existe e transpira como um verdadeiro personagem (tal qual a Pandora de Avatar) – texturas, luzes e cores são deleites visuais imersivos (amplificados no IMAX) e um dos mais acurados trabalhos da WETA Digital. Os corpos cibernéticos também são bastante realistas e mesmo a estranha aparência das feições de Alita tornam-se críveis e humanas, apesar do exagero cartunesco nos relembrar que essa realidade é bem mais distante, mesmo preservando a interpretação de Rosa Salazar.
Há uma preocupação patente em honrar o mangá – apesar de BAA ter adaptações para anime e games cujas soluções argumentativas e narrativas também estão no filme – a versão hollywoodiana se esforça em manter o máximo possível do gibi original, o que pode explicar a escolha de Rodriguez pra direção (sua versão de Sin City é considerada um caso de tradução entre-mídias quase perfeito) – ele replica falas e mesmo cenas do gibi, apoiando-se na ideia de Cameron de adaptar os primeiros dois volumes do mangá (Volume 1 da JBC) com elementos dos outros (como o Motorball – o que facilitaria na produção de uma trilogia), chegando a usar os fantasiosos nomes de lutas, golpes e tecnologias sem nenhuma vergonha ou pudor, e mantendo a dinâmica da relação entre os personagens: com um seguro destaque à dupla Alita e Ido (Christoph Waltz), de longe a melhor dupla do filme.
No entanto, boa parte dessa necessidade de fidelidade é também o calcanhar de Aquiles da obra. As subtramas se entrelaçam numa velocidade incômoda, dando pouco tempo de importância a personagens-chaves que poderiam ser melhor explorados em (prováveis) sequências. Hugo (Keean Johnson), um dos mais complexos e atraentes personagens da HQ, talvez foi o que mais sofreu na adaptação com sua história e motivações reduzidas a tal ponto que, não estivesse sua presença fortemente ligada à jornada de Alita, seu final teria tido um impacto menor.
Falando em construção de personagens, Rodriguez, cuja experiência com coloridas aventuras infantis, como Pequenos Espiões e Sharkboy and LavaGirl, encontra seu ambiente natural aqui, dando espaço para Rosa Salazar entregar uma Alita no extremo de sua adolescência, com paixões exageradas (e estereotipadas) que talvez garantam uma boa identificação e interação com o público, e sustentam a personalidade tempestuosa e rebelde da versão original, e cenas de luta bem coreografadas e dinâmicas – nos levando a crer, em dados momentos, que estamos assistindo um tokusatsu anabolizado (o que é um seguro elogio, vindo deste articulista).
No fim, Alita: Anjo de Combate talvez seja a melhor adaptação de um mangá de ação já feito por Hollywood, apesar de ainda não ser a melhor adaptação ocidental de um mangá, mas nos mostra que, aos poucos, talvez cheguemos lá.
*Curiosidades: Dark Angel, série criada por James Cameron que revelou a atriz Jessica Alba, foi fortemente influenciado por Alita.
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